Os desafios vividos por lutadores veganos no MMA

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Fraco? Sem força? Lutador vegano Nate Diaz

Quando o assunto é a alimentação de atletas, principalmente no MMA [Artes Marciais Mistas], é comum pensar em refeições ricas em fontes de proteínas como carnes, ovos e leite. No entanto, existem alguns que fogem à “regra” e utilizam um cardápio que exclui qualquer tipo de alimento derivado de animais, ou seja, seguem uma dieta vegana. De acordo com a associação inglesa “The Vegan Society”, a entidade vegana mais antiga do mundo, o veganismo “busca excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e de crueldade contra animais, seja para a alimentação, para o vestuário ou para qualquer outra finalidade.” Se tratando de veganismo, há muitas dúvidas [e preconceitos] quanto à ingestão adequada de vitaminas, aminoácidos e proteínas em refeições com alimentos de origem vegetal. Desta forma, é possível e saudável lutar em alto nível e ser vegano?

Mac Danzig, Alex Caceres, Jake Shields e os irmãos Nick e Nate Diaz são exemplos de personalidades do mundo da luta que comprovam que é possível aderir a esse estilo de vida e competir em alto nível no MMA. O Combate.com conversou com alguns especialistas para descobrir as verdades e mitos da dieta baseada em vegetais.

Uma das figuras mais conhecidas no mundo do MMA quando se trata de nutrição, Mike Dolce, o criador da “The Dolce Diet”, realizou a dieta vegana durante três meses apenas para compreender sua dinâmica. O treinador contou que precisou fazer refeições mais variadas, e garantiu que o maior obstáculo que pode atrapalhar um praticante do esporte a aderir ao veganismo é a “preguiça”.

– A dieta vegana é um estilo de vida nutritivo. Os atletas podem ter problemas como veganos, mas não porque a alimentação baseada em vegetais seja ruim, mas porque é difícil encontrar tudo o que precisam comer, é preciso fazer um esforço para encontrar tudo, e a maioria dos atletas é preguiçosa demais para ser vegana. É difícil, mas não é impossível. A grande variedade de vegetais pode ser difícil de encontrar para as pessoas. Em Las Vegas, eu precisaria ir a três mercados diferentes só para comer o necessário de vegetais. Não é ruim, mas exige esforço – disse Dolce, que já orientou as atletas veganas Heather Jo Clark, do UFC, e Colleen Schneider, do Bellator.

Para a nutricionista esportiva e vegana Alessandra Luglio, a chave para o sucesso na dieta vegana é justamente a variedade. Luglio afirmou que a dieta implantada da maneira adequada, com acompanhamento profissional e cardápio bastante diverso, oferece a maioria das substâncias necessárias para o bom funcionamento do corpo, com exceção da vitamina B12. Além disso, Alessandra conta que a dieta pode trazer até mesmo vantagens para o desempenho do lutador.

– Estudos mostram que atletas veganos, por precisarem manter uma dieta mais variada, consomem mais vitaminas, minerais e fitoquímicos antioxidantes que aumentam a produção de energia dentro das células, além de tornar o pH sanguíneo mais alcalino. Esse é um ponto positivo da dieta vegana, você elimina mais as toxinas do que quem come carne ou derivados.

Apesar dos benefícios que uma dieta balanceada e baseada em vegetais pode oferecer, há uma substância que não pode ser adquirida através desse tipo de alimentação: a vitamina B12. Sintetizada por bactérias presentes no meio ambiente e no trato gastrointestinal de animais, ela até é produzida no intestino grosso humano; no entanto, o local de síntese fica depois do intestino delgado, o local de absorção da vitamina, o que impede a absorção da B12 produzida no próprio corpo. Com isso, o consumo deve ser realizado a partir de fontes externas. A substância acaba não aparecendo na alimentação dos veganos devido às condições de higiene da vida contemporânea, mas pode ser consumida sob uma versão sintética.

– A vitamina B12 é a única não disponível na alimentação vegetal moderna. Ela é produzida por bactérias presentes no meio ambiente e também no intestino dos animais, assim como na microbiota humana. As bactérias produzem B12 por fermentação e nós acumulamos a vitamina. Nós, humanos, com o uso de agrotóxicos, bactericidas, normas de higiene, hábito de lavarmos alimentos, vivermos uma vida muito asséptica, não temos mais o contato com a B12 natural do meio ambiente e passamos a depender da B12 acumulada em tecidos animais através do consumo de alimentos de origem animal. No caso dos veganos, especialmente os atletas, é necessário dosar a cada seis meses, ou então suplementar, procurando um médico para suprir essa necessidade – explicou.

CARNE, AMINOÁCIDOS E FORÇA

Não é de hoje que o consumo da carne vem sendo relacionado à força. De acordo com o pesquisador Fabio Alves Oliveira, doutor em filosofia pela UFRJ e especialista em ética animal, a ideia começou a ser construída socialmente na medida em que a carne passou a ganhar status na alimentação, ainda nos primórdios da civilização, quando os seres humanos precisavam caçar para sobreviver. Fabio afirmou que a lógica é a mesma de outros segmentos da sociedade: o trabalho masculino sendo mais valorizado que o feminino, ou seja, a tarefa de buscar a carne, vista como “coisa de homem”, acabou atribuindo à proteína animal um maior valor, enquanto os alimentos cultivados no espaço privado, como frutas e verduras, não receberam o mesmo prestígio.

– A relação criada entre a carne e a força é uma concepção cultural muito engessada. Há muito tempo é feita a aproximação dos homens com a cultura e com o espaço público, enquanto a mulher fica com a natureza e o espaço doméstico. Enquanto as mulheres ficaram com tarefas mais “subordinadas”, o homem foi para o mundo, e isso envolvia ir à caça. Ir à caça em uma estrutura dietética, no sentido grego de dieta, como modo de vida, a dieta é quem determinava os homens. Por se tratar de um alimento trazido do espaço público para a casa, a carne tinha mais valor. A mulher, dentro do seu espaço doméstico, cultivava as verduras, os legumes, e esses alimentos não eram tão valorizados. Não à toa, nessa construção, a carne é vista como sinônimo de virilidade, que continua sendo um valor na nossa sociedade, e ainda é ligado à força. Aquele que pega o pedaço de carne com a mão e morde, no meio de uma refeição, é o homem. A gente tem a imagem desse homem. É um homem forte, barbudo, feroz, é o que vai a luta. Tudo isso porque ele está com um pedaço de carne. Mas se um homem chega no almoço de domingo da família tradicional brasileira e pede uma saladinha, ele é motivo de piada, ou vai ter que justificar por não estar consumindo carne ou um derivado. É uma construção sociocultural sobre a alimentação – constatou Fabio.

No lado nutricional se encontra a maior questão envolvendo os veganos, que é o consumo de proteína, já que os alimentos de origem animal são as principais e mais conhecidas fontes desse componente. Para o treinador de MMA e preparador físico André Benkei, a quantidade de aminoácidos (unidades formadoras da proteína) encontrada na dieta vegana é pequena para as necessidades que o desgaste de um atleta de MMA cria. Mike Dolce destaca que a carne na alimentação garante uma recuperação mais simples. No entanto, o americano garante que é possível encontrar os aminoácidos necessários para ter um bom desempenho com uma dieta “plant based” variada, e que a tarefa será apenas mais trabalhosa para o lutador.

É difícil para um atleta vegano treinar e fazer uma recuperação do mesmo jeito que os outros atletas, porque é muito fácil encontrar os aminoácidos essenciais em produtos animais e derivados. O mesmo pode ser encontrado em uma dieta “plant based”, você só vai precisar ingerir uma maior e mais variada fonte de proteínas.

– Em esportes de combate, é difícil para um atleta vegano treinar e fazer uma recuperação do mesmo jeito que os outros atletas, porque é muito fácil encontrar os aminoácidos essenciais em produtos animais e derivados. O mesmo pode ser encontrado em uma dieta baseada em vegetais, você só vai precisar ingerir uma maior e mais variada fonte de proteínas. É mais intenso para todo mundo que escolhe esse caminho, dá mais trabalho encontrar os alimentos e depois prepará-los, principalmente pelo fato de os atletas terem tempo limitado [entretanto, as proteínas vegetais não vêm acompanhadas de colesterol, gorduras, acidificantes do corpo, etc., ou seja, são bem melhores] – disse Mike Dolce.

Alessandra Luglio lembrou que, assim como os animais que são comumente consumidos nas dietas mais difundias mundo afora, o ser humano está preparado para sintetizar proteínas através dos aminoácidos encontrados em vegetais, e criticou o excesso de valorização do consumo proteíco na sociedade contemporânea.

– Acreditar que comer carne está ligado à força é um grande mito, mas existem motivos para as pessoas acreditarem nisso. O primeiro ponto para esses erros é o desconhecimento das fontes de proteínas vegetais. Para que as proteínas encontradas nas carnes fossem formadas, o animal teve que consumir vegetais. Cabrito, porco, boi… Esses animais consomem vegetais, e sintetizam a proteína através dos aminoácidos dos vegetais. Nós, assim como eles, temos esse caminho para a formação proteica. Se comermos de maneira adequada as fontes de proteína, vamos conseguir fazer o mesmo. As maiores fontes de proteína vegetal são leguminosas, feijão, ervilha, lentilha, grão de bico, soja, todos os vegetais verde-escuros, castanhas, sementes, cogumelo, quinoa, ou seja, a combinação dos alimentos ao longo do dia fazem naturalmente com que alcancemos a quantidade de proteína recomendada. O segundo ponto é que vivemos um modelo alimentar ocidental que supervaloriza o consumo proteico, principalmente no esporte. As pessoas associam força ao consumo de proteínas em excesso. Isso não é real, precisamos da quantidade adequada, não mais que o necessário. [Exatamente!] Muitas pessoas acham que precisam consumir muita proteína por causa do músculo. A ciência hoje diz que consumir mais proteínas que o seu corpo pode absorver não faz a mínima diferença e pode até prejudicar o seu caminho energético – revelou Alessandra.

CORTE DE PESO

Uma das vantagens que a dieta vegana pode oferecer ao atleta de MMA é uma maior facilidade para cortar peso [corte de peso é a prática de perda de peso rápida antes da pesagem para a luta]. Desde que iniciou a transição para o veganismo, o lutador brasileiro Bruno Carvalho, que aderiu ao estilo de vida, inicialmente, para sair do peso-médio (até 83,9kg) para o meio-médio (até 77,1kg), passou a se recuperar mais rápido após esse tipo de desgaste. Bruno contou que sente um impacto muito menor e menos agressivo durante o processo para reduzir o peso.

– Depois que me tornei vegano, sinto um corte de peso muito mais tranquilo que antes. Me sinto com mais energia, até por consumir mais carboidratos e ficar dentro do meu gasto calórico. Eu entendi também que a carne demora a ser processada no organismo, tem uma digestão lenta. Acredito que parar de comer carne poderia ajudar no corte de peso, mesmo que por um tempo reduzido, já ajudei alguns dos meus atletas e sempre deu certo. As carnes passam mais tempo no organismo, têm digestão lenta, o que também diminui a energia do atleta. Na reta final do corte, o que se espera além da desidratação, que todos já fazem, é eliminar qualquer peso extra nos intestinos – afirmou Bruno.

Se Mike Dolce, que acredita ser possível adotar o veganismo sendo um atleta de MMA, não crê em uma vantagem no corte de peso para atletas veganos – para ele, basta ter uma alimentação balanceada -, André Benkei tem o posicionamento inverso. Apesar de não ser a favor de uma dieta vegana para lutadores, o preparador físico brasileiro disse que diminuir a proteína animal pode ajudar, sim, no corte de peso. Conhecido como “mago da balança”, Benkei contou que faz seus atletas restringirem o consumo no momento do corte e de recuperação de peso.

– O corte de peso é uma outra história. Quando você corta o peso, principalmente na recuperação, eu sou um pouco restrito com a proteína. É uma outra situação. O atleta está recuperando carboidratos, a gente está fazendo com que ele absorva o máximo possível de carboidratos, então a proteína se torna um fator de diminuição dessa absorção. Nesse momento, no dia da pesagem, eu já sou mais controlado com a proteína animal – revelou Benkei.

De acordo com Alessandra Luglio, as condições exigidas no momento do corte, como a restrição do consumo de calorias, trazem consequências que seriam superadas com maior facilidade por lutadores veganos, justamente pela variedade de substâncias que uma dieta baseada em vegetais oferece.

– A dieta vegana poderia ser encarada como uma aliada no corte de peso. As estratégias em momento de corte são basicamente a diminuição do valor calórico total (reduzir proporcionalmente o total calórico consumido), diminuir a ingestão de sódio (zero de sal de adição) e desidratar (perder líquidos). A alimentação vegana poderia ajudar, pois ela garante inclusive melhor condição nutricional, devido ao aporte aumentado de vitaminas e minerais da dieta. Reduzir calorias garantindo mais nutrientes faz o atleta minimizar os impactos negativos (sensação de fraqueza) deste período – finalizou Luglio.

* Jamille Bullé, estagiária, sob a supervisão de Adriano Albuquerque

(Combate)

Nota 1: Para quem acha que lutadores de alto nível precisam ser, necessariamente, adeptos de um regime com alimentação cárnea, esta matéria é bem esclarecedora!

Nota 2: “Cereais, frutas, nozes e verduras constituem o regime dietético escolhido por nosso Criador. Estes alimentos, preparados da maneira mais simples e natural possível, são os mais saudáveis e nutritivos, proporcionam uma força, uma resistência e vigor intelectual, que não são promovidos por uma alimentação mais complexa e estimulante.” {Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver, 295, 296}

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